Trabalho, vocação e aposentadoria.
Mentoris - Gustavo Brandão
Enquanto nosso
paradigma e modelo de trabalho derivar do conceito de “maldição”, fruto de uma
interpretação teológica equivocada da tradição cristã, o teremos como sendo o
cumprimento de uma pena: o homem foi ‘condenado’ a trabalhar.
Assim, no
imaginário popular o que se puder fazer para burlar esta sentença, será feito. Até
mesmo dar ‘jeitinhos’, pagar santos ou políticos ou empreiteiros ou religiosos
e suas mandingas pra ‘facilitar’ as coisas neste plano existencial ou em outro,
trocando promessas por favores. Esta cultura de toma-lá-dá-cá é a base da corrupção.
Nesse contexto, o trabalho é coisa para otários.
Porém a
verdadeira maldição não é o trabalho em si, mas o trabalho sem propósito ou com
o desígnio errado. O propósito correto e transcendente é chamado de vocação, ou
“beruf”, nas palavras de Max Weber em
sua obra ‘A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo’. Desta forma, o
exercício de uma vocação é muito mais do que uma profissão ou ocupação, mas exatamente
o trabalho revestido de significado.
Por mais
importante que seja, não é o trabalho que dignifica o homem. Apenas o homem
livre pode dar significado e dignidade ao que faz, seja lá o que for. Isso não
é tarefa do patrão nem do governo. Quem transfere a dignidade do que faz a um
diploma, um cargo ou a algum condicionamento cultural torna-se escravo do fazer
para ter alguma coisa, desde bens materiais até reconhecimento de algum grupo.
À igreja,
pensando em nossa sociedade ocidental cristã, interessa muitas vezes passar o
conceito de ‘maldição’ com um objetivo apenas: a de pretender redimir o homem fazendo-o
contribuir com o suor de seu rosto para alcançar o lar celestial e domesticar ao
mesmo tempo o ser social. Desta forma, os tributos ou indulgências eclesiásticos
visam sustentar a máquina religiosa em troca da salvação ou pacificação do
espírito do contribuinte duplo: do estado e da igreja. Eles sempre cooperam
para objetivos comuns.
Dentro do contexto
histórico, muitas coisas permitiram que as sociedades modificassem a essência
de suas relações, sendo que o fim dos laços de solidariedade que determinavam o
equilíbrio entre as diversas formas sociais foram sendo desfeitos e favorecendo,
insidiosamente, grupos que se viram amparados por ideologias e, consequentemente,
suas teorias econômicas. Assim o conceito de homem e de sociedade migrou do homem
cordial para o de homem econômico. Isso trouxe consequências.
O
ser humano é um ser social antes de ser econômico, por mais que se tente medir
o ser pelo ter. Durante boa parte de sua existência a humanidade procurou viver
em sociedade, fazendo das relações humanas a base de todas as coisas –
inclusive dos conflitos e da busca de soluções para as tensões existenciais de
sempre. Os arranjos aconteciam buscando resguardar a integridade das diversas
culturas, cada uma mantendo suas características em maior ou menor escala.
Quando os aspectos culturais eram destruídos, isso era devido a um conflito
aberto, dramático, na típica relação de conquistadores para conquistados.
Insidiosamente,
entretanto, novas formas de relações sociais foram tomando conta dos grupos,
povos e sociedades. Novas atitudes, novas práticas comerciais, novas ideologias,
novas teologias, foram construindo a complexa rede de relações que
transformaram o homem cordial em um ser moldado e regulado basicamente pelo
Mercado, enquanto sistema econômico moderno. Uma nova visão de mundo aconteceu
e passou a controlar e determinar as ações e relações humanas (Karl Polanyi, “A
Grande Transformação: as origens da nossa época.” 1944).
Destas
novas relações surgiram três grandes mercadorias: o trabalho, terra e dinheiro.
A base de uma
economia de mercado é um sistema econômico controlado, regulado e dirigido
apenas por mercados. A ordem de produção e distribuição de bens é confiada a
esse mecanismo autorregulável. Autorregulação significa que toda produção é para
a venda no mercado. O que está à venda?
“Todos
os rendimentos derivam de tais vendas. Por conseguinte, há mercado para todos
os componentes da indústria, não
apenas para os bens (sempre incluindo serviços), mas também para o trabalho, a terra e o dinheiro, sendo
seus preços chamados respectivamente, preços de mercadorias, salários, aluguel
e juros. Os próprios termos indicam que os preços formam rendas: juro é o preço
para o uso do dinheiro e constitui a renda daqueles que estão à disposição de
fornecê-lo. Aluguel é o preço para o uso da terra e constitui a renda daqueles
que a fornecem. Salários são os preços para o uso da força de trabalho, que
constitui a renda daqueles que a vendem.” (Polanyi)
Isso
trouxe sérias consequências para as relações humanas, que passaram a ser cada
vez mais utilitaristas, frias e precificadas. O homem tornou-se cada vez mais apenas
um objeto empregado para gerar dinheiro para o governo e outros homens que exploram
seu tempo.
Quem trabalha
apenas trocando seu tempo por salário é realmente um maldito empregado. E todo
amaldiçoado é um escravo.
Lembro bem
quando surgiram os computadores: agora as pessoas poderão fazer mais rapidamente
seu trabalho, podendo ter mais tempo para si, diziam. Porém, a velocidade para
obtenção de resultados financeiros foi o que passou a determinar a produção. O
que se produzia em uma semana passou a ser produzido em um dia e a pressão só
aumentou. Para que?
Por outro
lado, quem exerce uma vocação é livre para dar a dimensão e o propósito que
desejar para sua vida e para o que faz, seja lá o que for. Uma vida mais
simples, com qualidade, sem ser definida pelo ter mas sendo senhora de seu
tempo e de sua produção.
Somente quem
é livre consegue estabelecer os limites que separam a sua vocação da
escravidão. O conceito de ‘aposentadoria’ está atrelado a uma qualidade de vida
de “merecido descanso.” Mas se a vida é com qualidade antes, para que se desejar
um depois, quando o corpo e a saúde já não permitem a mobilidade de outrora?
Sacrificamos
a juventude, o tempo, a saúde, ..., para
conquistar bens para usufruir quando não tivermos mais juventude, saúde e
tempo. Não tem sentido, é a mentira do mercado nos bancos escolares para servir
os deuses que queimam gerações em suas máquinas de guerra e exploração.
Percebe-se com isso que a discussão da 'aposentadoria' nada mais é do que a discussão entre os senhores
do mercado e seus escravos. E escravo, todos sabem, não tem poder de decisão,
apenas de revolta.
Dizem que
um novo mundo, um novo ser, uma nova vida seja possível.
Acredito
que sim, mas você saberia como?